Em artigo publicado no “Eu & Fim de Semana”, de 8/3/2019, André Lara Resende vem mais uma vez desafiando velhos paradigmas da teoria macroeconômica. Se em seu livro “Juros, Moeda e Ortodoxia” ele questiona a relação de causalidade entre taxa de juros e inflação, agora passa a questionar o “fiscalismo dogmático” e defender políticas fiscais ativas para estimular o crescimento e pleno emprego: “Um governo que equilibra seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego”. Nesse sentido, Lara Resende abandona a Teoria Fiscal de Preços, sustentada por ele no referido livro, segundo o qual a determinação do nível geral de preços é um fenômeno fiscal, não possuindo qualquer relação com a taxa de crescimento do estoque de moeda.
Nesta nova empreitada, Lara Resende traz à tona a chamada Moderna Teoria Monetária (MMT em inglês), desenvolvida por alguns economistas pós-keynesianos na década de 1990 nos EUA. A MMT inspirou-se tanto no “cartalismo”, segundo o qual a moeda é uma unidade de conta criada pelo Estado cuja aceitação resulta da possibilidade de usá-la para pagar impostos, quanto na Teoria das Finanças Funcionais de Abba Lerner, que defende que a política fiscal deve ser conduzida em função de seus impactos sobre a economia, sendo desejável uma política fiscal expansionista em uma economia operando abaixo do pleno emprego. Em particular Lerner sustenta que o princípio das finanças sadias aplica-se aos agentes privados mas não a governos soberanos, que ao emitir sua própria moeda não estão sujeitos a qualquer restrição financeira.
A MMT, dentro da tradição cartalista, argumenta que déficits do governo geram, em contrapartida, ativos financeiros líquidos do setor privado: uma vez que a maior parte do setor privado quer acumular superávits financeiros, o governo deve em contrapartida incorrer em déficits orçamentários para diminuir o desemprego. Nesta perspectiva, a oferta de moeda é endógena, tal como sustentado há muitas décadas por economistas pós-keynesianos, no sentido de que sua criação resulta das decisões de gastos dos agentes e da alocação de riqueza financeira deles. Assim, o Banco Central (BC) controla efetivamente a taxa de juros básica da economia, que se for mantida abaixo da taxa de crescimento da economia, contribuirá para redução da relação dívida pública/PIB.
Em realidade, esta “novidade” teórica nos remete a uma discussão feita nos EUA por economistas próximos ao Partido Democrata, focando em particular no impacto de uma política fiscal expansionista sobre a taxa de juros, ou seja, se ela se a pressionaria para cima ou para baixo. Essa discussão — com artigos de Krugman, Summers, Rogoff, entre outros —, 2 envolve diretamente a MMT, já que uma das assessoras de Bernie Saunders, Stephanie Kelton, é uma das principais expoentes dessa corrente que tem polemizado com os referidos autores.
A MMT tem feito um importante contraponto no debate americano em relação à tese de contração fiscal expansionista, mostrando – corretamente – que há mais espaço para uma política fiscal ativa do que a ortodoxia sustenta. Lara Resende traz essa discussão para o Brasil, questionando o que chama de “fiscalismo dogmático” e “quantitativismo anacrônico”. Entendemos que essa discussão é bem-vinda e necessária e louvamos seu esforço de questionar os velhos paradigmas da ortodoxia. Contudo, gostaríamos de fazer algumas considerações gerais à sua análise.
Os argumentos teóricos da MMT não são novidades para economistas keynesianos, vários dos quais os consideram simplistas e até mesmo equivocados. E tampouco é consensual entre os economistas heterodoxos no mundo e no Brasil, ao questionarem a ideia de que não há quaisquer constrangimentos ao aumento do déficit público e da dívida pública enquanto a economia estiver operando abaixo do pleno emprego. Quais são as limitações da MMT de uma perspectiva keynesiana?
Por um lado, a moeda é vista apenas como meio de troca e unidade de conta de contratos. Esta última função tem sem dúvida um papel fundamental em economias monetárias, mas na realidade ela é mais do que isto: a moeda é forma geral da riqueza em economias capitalistas, sendo que os agentes, segundo suas expectativas quanto ao futuro, podem alterar sua (maior ou menor) preferência por ativos líquidos. Deste modo, a moeda e ativos líquidos competem na composição de portfólio com outros ativos, inclusive ativos reais (como ativos de capital).
O resultado disso é a não neutralidade da moeda, que causa impacto sobre o ritmo de produção e acumulação da economia. A visão da MMT, contudo, é simplista no sentido de que olha apenas o circuito monetário dos gastos e seus fluxos correspondentes, e não considera que parte importante das decisões de portfólio dos agentes é relativa à acumulação da riqueza financeira (estoque).
Por outro lado, a economia pode esbarrar em restrições reais antes de alcançar o pleno emprego: gargalos produtivos típicos de uma economia em crescimento podem limitar o crescimento da oferta produtiva. Deste modo, a inflação pode aparecer antes da plena ocupação, seja em função da existência de gargalos em subsetores da economia, seja em função de conflitos distributivos que derivam das barganhas de setores organizados que não estão satisfeitos com sua remuneração, o que pode fazer com que salário real cresça acima da produtividade. A ausência de uma explicação para a inflação antes do pleno emprego é uma das deficiências da MMT.
Acrescente-se ainda que a MMT desconsidera as assimetrias inerentes ao sistema monetário internacional que limitam o “espaço de política” para implementação de políticas keynesianas em países emissores de moedas periféricas, uma vez que tais moedas não cumprem internacionalmente o papel de meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor, estando sujeitas a um “pecado original” relacionada à dificuldade desses países de emitirem dívida em sua própria moeda. Isso tem várias implicações de política, entre as quais o fato de a política econômica, sobretudo em economias abertas financeiramente, ficar sujeita às avaliações de risco e rentabilidade dos investidores globais. Esta é outra limitação da MMT: ela 3 tem alguma validade para o país emissor da moeda chave internacional (EUA), mas não é generalizável para outras economias, em particular economias emergentes.
Em relação à inflação, Lara Resende sustenta que a alta geral do nível de preços é uma questão de expectativas e sugere que essas devem ser guiadas pelo BC nos termos de um regime de metas de inflação. Aqui não fica claro qual exatamente sua explicação para a inflação: caberia ao BC adotar uma política monetária conservadora para ancorar as expectativas? Creio que não seja esta a explicação. Corretamente ele assinala a necessidade de modernização do sistema monetário, com substituição das LFTs e compromissadas por depósitos remunerados do BC, com prováveis efeitos sobre a redução da taxa de juros no Brasil.
No que se refere à política fiscal, o economista sustenta que o déficit nominal no Brasil é alto porque a taxa de juros é absurdamente elevada, e que, embora não haja restrição financeira ao governo, tal política tem impactos alocativos e redistributivos importantes; ademais, o governo deve estar sempre avaliando custos e benefícios dos seus gastos. Não haveria assim uma “licença para gastar” à vontade, ainda que esclareça em entrevista ao jornal “O Globo” (24/2/2019) que “o teto de gastos é uma restrição política-institucional que não faz sentido quanto há desemprego e capacidade ociosa” e que, entretanto, o governo deve “gastar bem, com investimentos bem programados na infraestrutura, na saúde, na educação e na segurança (….), mesmo que signifique um déficit temporário nas contas públicas”.
Essa é uma discussão relevante, já que a literatura empírica mostra que investimentos públicos em infraestrutura econômica e social têm efeitos multiplicadores de renda maiores do que outros tipos de gastos públicos. O próprio Keynes defendia que o orçamento de capital (investimentos públicos) deveria estar deficitário, enquanto que o orçamento ordinário (gastos correntes do governo) deveria ser superavitário, contribuindo assim para o equilíbrio fiscal intertemporal de longo prazo, dado o caráter contracíclico dos gastos públicos. Contudo, quando discute a reforma tributária, Lara Resende defende a simplificação tributária, mas não aborda a questão fundamental da progressividade tributária, cuja importância tem sido destacada até por instituições mais convencionais, como o FMI.
Lara Resende parece defender a combinação de um liberalismo econômico, com maior abertura econômica, com adoção de uma política monetária e fiscal não dogmática. Ademais, ele não considera as limitações relativas às assimetrias monetárias e financeiras sobre economias emergentes como a brasileira. Em particular, como é possível ter autonomia na condução da política econômica em condições de uma conta financeira liberalizada?
Há importante e aprofundada discussão na literatura econômica a respeito tanto do reduzido grau de liberdade na condução da política econômica mesmo com adoção de regime cambial flutuante quanto do papel de uma taxa de câmbio real competitiva para o crescimento de longo prazo de economias em desenvolvimento.
André Lara Resende tem dado importantes contribuições para o debate sobre política monetária e política fiscal no Brasil. Seu próximo e desejável passo seria se contrapor à ortodoxia monetária no que se refere à taxa de câmbio. Bem-vindo ao Admirável Mundo Novo! Luiz Fernando de Paula, professor do IE/UFRJ, é coordenador do Geep/Iesp e ex-presidente da Associação Keynesiana Brasileira